Já virou lugar-comum ressaltar o Uruguai como um país especial na América Latina, onde prevalecem uma democracia organizada, o respeito às instituições, uma sociedade com excelente formação educativa, na vanguarda com relação à aceitação de vários direitos pessoais, ao mesmo tempo em que possui um Estado com ampla preocupação com a justiça social.
Os principais partidos do país são instituições antigas e bem estabelecidas. O atual governante, o Partido Nacional, ou Blanco, hoje mais liberal, nasceu em 1836, mesmo ano em que foi criado o Partido Colorado, hoje mais conservador. Enquanto isso, a Frente Ampla, que reúne vários partidos e agrupações de centro e de esquerda, estabeleceu-se em 1971.
É claro que nenhuma situação pode ser assim tão idílica e estável, e o quadro real dos problemas uruguaios é mais complexo. A poucos meses da eleição presidencial, em outubro, as principais preocupações dos uruguaios talvez surpreendam quem imagina o país como um lugar paradisíaco para passar a aposentadoria: segurança, altos impostos e desemprego.
Obviamente, não se pode comparar as cifras de homicídios do país (11,2 para cada 100 mil habitantes) com as de uma nação centro-americana convulsionada como Honduras (31,1 para cada 100 mil). Mas, diante de Chile (4,5) e Argentina (4), trata-se de um dado alarmante.
No último dia 30, ocorreram as primárias uruguaias, e a interpretação de seus resultados passa por compreender tanto as características que fazem do Uruguai um país positivamente diferente, como também suas mazelas e angústias específicas.
O partido governante, liderado pelo presidente de direita moderada, Luis Lacalle Pou, curiosamente recebeu um castigo nestas eleições, mesmo não tendo enfrentado grandes crises e tendo mantido índices de popularidade altos durante todo o mandato.
O comparecimento às urnas dos “blancos” foi muito menor que o esperado, e o vencedor, o ex-secretário da Presidência Álvaro Delgado, que será o candidato da sigla em outubro, não entusiasma para além de seu espaço político. Com isso, o ambiente não é o mesmo de 2019, em que o Nacional pôde formar uma ampla aliança com outros partidos para vencer.
Já na Frente Ampla, o entusiasmo transborda com um líder de uma nova geração. Trata-se de Yamandú Orsi, de 57 anos. Simpaticão, torcedor do Peñarol, ele faz campanha com a garrafa de mate debaixo do braço, hábito típico dos uruguaios comuns. Orsi ganhou de braçada a primária e desponta como líder na maioria das sondagens.
Antes da vitória de Lacalle Pou, a Frente Ampla governou por três mandatos seguidos, dois do socialista Tabaré Vázquez e um do ex-guerrilheiro José “Pepe” Mujica.
Sendo um “partido de partidos”, a legenda abarca várias correntes de pensamento. Orsi, no caso, volta a colocar o time de Mujica em campo, o MPP (Movimento de Participação Popular), formado nos anos 1980, quando ex-combatentes da organização Tupamaros decidiram trocar a luta armada pelo caminho democrático.
Nestas primárias, e também reforçando que o Uruguai é um país na contramão dos vizinhos e mesmo do planeta, o partido de ultradireita, Cabildo Abierto, encolheu.
Tudo indica que teremos uma eleição competitiva e que é cedo para previsões. A tendência, hoje, é de um possível retorno de uma esquerda consolidada e organizada, de tendência mais combativa e popular, com o impulso de uma velha geração de idealistas em armas.
Voltar ao clichê é inevitável, mas, sim, trata-se de um país singular.
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