Em tempos de ajuste fiscal, temos acompanhado com preocupação a série de medidas encampadas pelo governo com foco no incremento da arrecadação, dentre elas as programações fiscais desencadeadas pela Receita Federal para a fiscalização das reduções de capital realizadas por pessoas físicas nas participações societárias detidas no exterior.
Por meio da Lei nº 14.754, de 12 de dezembro de 2023, enfim foi aprovada a reforma tributária que instituiu a regra anti-diferimento do IRPF, relativamente aos rendimentos auferidos por pessoas físicas residentes no Brasil em entidades controladas e trusts no exterior, recebendo regulamentação por meio da IN RFB nº 2.180, de 11 de março de 2024.
Assim, a partir de 2024, criou-se regime segundo o qual os lucros apurados pelas entidades controladas no exterior por pessoas físicas residentes no Brasil serão tributados em 31 de dezembro de cada ano, à alíquota de 15%, por meio da DAA (Declaração de Ajuste Anual), entregue em maio do ano seguinte.
Preservou-se, contudo, o estoque de lucros apurados na offshore até 31 de dezembro de 2023, lucros esses que serão tributados, como era antes, apenas no momento da efetiva disponibilização para a pessoa física residente no Brasil, com a alíquota agora reduzida para 15%, não mais 27,5%.
Ponto de atenção, nesta situação, é que por conta da revogação do art. 24 da MP nº 2.158-35/2001, eliminou-se a isenção que havia sobre o rendimento decorrente de variação cambial quando o investimento tivesse origem em rendimentos auferidos originariamente em moeda estrangeira, questão que, por si só, gera um debate acerca do direito adquirido à isenção relativamente ao estoque passado.
Em contrapartida, veiculou-se a possibilidade de atualização do valor dos bens e direitos no exterior, mediante pagamento de uma alíquota reduzida de 8%, garantindo-se, nessa situação, a isenção da variação cambial no caso de aquisição com rendimentos auferidos originariamente em moeda estrangeira.
Criou-se então a declaração chamada ABEX, cujo prazo de adesão encerrou-se em 31/05/2024, tratando-se de um “estímulo positivo” visando incentivar a arrecadação, inclusive por meio de campanhas da RFB, que chegou a ter que publicar nota afastando “FAKE NEWS sobre fiscalizações em caso de atualização de ativos no exterior” 1, segundo a qual “com a adesão, o contribuinte se beneficiará de maior segurança jurídica e estabilidade”.
O problema é que, por um lado, continua em vigor a indigitada e incompreendida Solução de Consulta Cosit n.º 678/17 que, tratando das reduções de capital nas offshores, dentre diversas impropriedades, sustenta que “na devolução do capital em dinheiro não existe alienação, pois o capital devolvido não havia deixado de ser propriedade do acionista/quotista/titular.”
A referida SC 678, como sabido, tem fundamentado diversas autuações fiscais desde sua edição, nas quais se tributa as reduções de capital à 27,5%, mesmo não havendo ganho (diferença positiva entre custo de aquisição e o capital devolvido), abarcando até a variação cambial (independentemente da origem em moeda estrangeira ou não), adotando um distorcido hibridismo fiscal sobre o qual já tivemos a oportunidade de apontar, em 20212.
Contudo, o art. 7º da nova lei é claro ao dispor que “a variação cambial (…) comporá o ganho de capital percebido pela pessoa física no momento da alienação, da baixa ou da liquidação do investimento, inclusive por meio de devolução de capital.”
Ou seja, ficou claro aquilo que nunca se teve dúvida: devolução de capital é espécie do gênero alienação e está sujeita ao regime de ganho de capital (GCAP), às alíquotas de 15% a 22,5%, e não ao regime de carnê-leão à alíquota de 27,5%.
Por outro lado, mais recentemente, a RFB tem intensificado as fiscalizações envolvendo as reduções de capital de participações em empresas no exterior, expedindo termos padrões de autorregularização, com a recomendação de retificação da DAA e recolhimento do IRPF carnê-leão à 27,5%, inclusive sobre a variação cambial, sob pena de lavratura de autuações fiscais e multas de ofício, insistindo na mesma SC 678 como fundamento.
Um indesejado convite à litigiosidade, contrário à nota institucional RFB antes referida.
Ainda no caso daqueles que aderiram à ABEX, acreditando nos incentivos em busca por “segurança e estabilidade” e aproveitando da alíquota reduzida de 8%, há uma outra crise de credibilidade que certamente levará a mais litígios.
Trata-se da situação envolvendo os contribuintes que aderiram ao programa de regularização cambial e tributária (RERCT), veiculado pela Lei nº 13.254, de 13 de janeiro de 2016 (e reaberto em 2017), cujas DERCATs, aliás, já foram tacitamente homologadas pelo decurso do prazo decadencial.
Isso porque, conforme regras daquele programa, os bens anistiados foram considerados como ganho de capital auferidos em 31 de dezembro de 2014 e tributados à 15%, mediante conversão dos valores expressos em moeda estrangeira para moeda nacional, ou seja, atribuindo-se ao contribuinte um ganho de capital oriundo de rendimentos auferidos originariamente em moeda estrangeira, para todos os fins e efeitos de direito.
Assim, a parcela da atualização da ABEX referente à variação cambial dessas participações regularizadas no RERCT, estaria isenta do IRPF.
E, nos termos do “perguntas e respostas” disponibilizado à época do RERCT (ADI nº 5/2016), não haveria a necessidade de o contribuinte comprovar a origem dos recursos, mas apenas declarar (“ticar”) no campo apropriado da DERCAT (vide pergunta 40).
Eis não foi a surpresa quando, dois anos após a adesão à anistia, houve uma alteração daquele “perguntas e respostas” por meio do ADI nº 5, de 4 de dezembro de 2018, de modo que se passou a exigir a comprovação documental da origem dos recursos no momento da posterior fiscalização da DERCAT.
Tal exigência levou os contribuintes a um grande desconforto e insegurança, abrindo desconfiança e induzindo relevante contencioso sobre o assunto, que perdura até hoje.
Na mesma linha, surge agora o “perguntas e respostas” da ABEX3, segundo o qual “o mero fato de ativos terem sido declarados no RERCT não indica que eles possuem origem em moeda estrangeira”, obrigando o contribuinte, assim, a comprovar a origem dos ativos antes da declaração no RERCT (vide resposta 22).
Vale dizer que aqueles ativos, antes considerados oriundos de rendimentos auferidos com recursos originariamente em moeda estrangeira, pelo próprio regime jurídico instituído pela Lei nº 13.254/16, e que não precisariam ter sua origem comprovada, salvo na hipótese de haver indícios outros que não a própria DERCART, agora passam a ser objeto de novo e desdobrado questionamento.
Há com isso, uma reedição da mesma discussão travada no RERCT, por meio da qual se pretende, por via transversa, revisitar o programa de anistia.
No fim, a impressão que fica é de uma reforma tributária paralela e silenciosa, por meio de interpretações infralegais em busca de maior arrecadação, levando à instabilidade sobretudo nas regras de transição democraticamente aprovadas.